terça-feira, 24 de outubro de 2023

7.1: Livrarias, alfarrabistas e hipermercados


Livros. Aqui pensamos num fenômeno editorial de vendas das últimas décadas: a literatura de auto-ajuda. Mas será que se pode questionar a premissa de que estamos realmente tratando de livros? Não na qualidade de objetos empíricos e dotados de concretude física, materialidade, que certamente o são, mas da espécie de matéria espiritual em que se transformam. Será mesmo que o livro que é comprado numa livraria e num alfarrabista é o mesmo que o que procuramos no hipermercado?

E se nos propusermos a inventariar alguns títulos de livros e outros conceitos-chaves com que estas literaturas trabalham, numa tentativa de relacionar os campos semânticos em que circulam com outros atores sociais empíricos por onde transitam ou são consumidas estas mercadorias, livros a priori. Aqui estamos trabalhando com a categoria do leitor-receptor-consumidor transformado em co-produtor de sentido de uma nova unidade fundante: o texto-contexto.

Uma primeira percepção é quanto ao predomínio de títulos que ora remetem ao universo da ciência, da farmacologia, ora ao da magia, do curandeirismo. Temos “Gotas de sabedoria”, “Pílulas de Felicidade”,  “O Alquimista”, “Diário de Um Mago”. Na estilística há uma recorrência a regras, métodos, leis, que sugerem outras aproximações, desta vez com fórmulas medicinais, receitas de poções, bulas de remédio e leis da física ou da química. O discurso é muitas vezes o catequético ou teológico, como sugerem os títulos “Peça e Será Atendido”, “Você é Mais Capaz do Que Pensa” e “O poder do agora”. Na forma com que uma voz superior se dirige ao leitor, ouvimos o Deus-mercado falando com seu discípulo-consumidor. Nos discursos, a mesma doutrina. O indivíduo pode resolver tudo por si mesmo, com diversas roupagens: “pensamento positivo”, “lei da atração”, “lenda pessoal”. A diversificação e a distinção enfática das temáticas, servem para organizar e classificar os consumidores, padronizando-os, como pensa Adorno em seu ainda atualíssimo ensaio “Indústria Cultural”. Produtos de massa dirigidos a nichos de mercado que aparentemente conferem uma percepção de identidade diferenciada a cada segmento. Há os pseudo-filosóficos, os pseudo-místicos, os pseudo-literários, sendo que efetivamente a grande parte destes leitores-consumidores não possuem contato algum com nenhuma destas tradições, quer seja através de seus textos, comunidades ou práticas, mas simplesmente através da facilitação da mídia, que dilui e homogeiniza esses discursos. A produção de pertencimento a uma coletividade virtual, esta comunidade de indivíduos unidos anonimamente pela leitura de best sellers, se irmanando por esta estranha construção de uma identidade negativa _ leitores-de-auto-ajuda- anônimos.

Os templos de consumo são menos as tradicionais livrarias, quase nunca os alfarrabistas, mas sobretudo e, curiosamente, as prateleiras-santuários dispostas em forma de altar, nas mega-drogarias, hipermercados e lojas de conveniência AM/PM, 24 horas. Estes são os locais de distribuição desta espécie de livros. Em que matéria espiritual se transformaram estes objetos, se olharmos para a forma com que são distribuídos e consumidos. Curioso pensar que hoje dificilmente encontramos templos ou espaços sagrados abertos na madrugada, ao contrário de num passado onde o acesso ao curandeiro, ao feiticeiro, ao sacerdote, não conhecia horário comercial. Na madrugada contemporânea, quando os fantasmas dos loucos e dos insones tornam a assombrar, podemos ver este homem caminhando solitário, aprisionado em sua doutrina hiperindividualista. Seu slogan é o make yourself e seu destino os self-services. Na próxima loja de conveniência AM/PM ou hipermercado, o homem pensa encontrar o bálsamo para sua alma.

Karen Barboza Aldi

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