quinta-feira, 7 de dezembro de 2023

Uma ode à criação e ao renascimento

Tanto a escrita como a edição são dois actos de criação, uma é primeira e a outra é a criação segunda. Existe ainda uma terceira criação feita pelo leitor, que com as suas experiências e história de vida ajuda a completar o sentido do livro através do gesto da leitura que também tem o poder de criar.

Depois de ler a banda desenhada, The Tale of One Bad Rat (de Bryan Talbot), percebe-se que existem paralelos de intertextualidade com um conto de Beatrix Potter. Encerra também em si uma forte carga de metalinguagem ao inserir esse mesmo conto no seio do próprio comics, como se fosse "a play within a play" do texto dramático Hamlet, estratégia literária essa que é também popularmente conhecida pela expressão francesa mise en abyme. O leitor passa assim a ler esse conto pelos olhos da protagonista, Helen. Tudo isso é criatividade na criação literária.

Gostaria de destacar que nas últimas páginas da banda desenhada existe ainda uma espécie de nota do autor com o sugestivo título Rat's Tail que funciona como uma terminação do discurso que se inicia nos bigodes do livro  (Rat's Whiskers). Nesta nota de autor, Bryan Talbot ajuda o leitor a compreender o processo criativo da escrita, assim como os detalhes de funcionamento da parte editorial e da publicação que surgem em permanente diálogo com as ilustrações (cores, rostos, locais retratados que são reais, símbolos, etc).

The Tale of One Bad Rat é uma ode à criação literária porque segue a estrutura tripartida do storytelling (vou morrer sem saber traduzir esta palavra!) exemplarmente, tendo as palavras Town, Road e Country como símbolo da viagem externa e interna da personagem, que como um rato de cidade, encontra a paz na purificação do campo que está longe dos perigos dos atropelos da (pouca) civilização humana existente.

É também uma ode à edição dessa própria criação porque na cauda do livro o autor explica passo a passo como transformou a sua imaginação (com pinceladas de realismo porque o tema aqui tratado é cru e pesado) e a sua pesquisa em quadradinhos

É acima de tudo uma ode ao renascimento de uma sobrevivente de um trauma de abuso sexual e de abandono na infância, tratada com o máximo respeito pelo autor. Não é uma BD fácil de digerir mas as letras e as imagens não tem de entreter sempre, devendo também alfinetar e desassossegar quem as lê com as duras realidades e com os horrores que outros vivenciam e que os cicatrizam.



Nota: Achei curioso que no capítulo Country a palavra Pint (que tantas dores de cabeça causou na tradução do poema narrativo de Raymond Carver) surge mencionada por uma das poucas personagens que ajuda Helen, o Mr. McGregor. Talvez possa ajudar a compreender a sua semântica e contexto a utilizar. Ironicamente tenho reparado que os dicionários inglês-inglês (como o Oxford English Dictionary que é excelente) são melhores para traduzir para português do que os de inglês-português.

Vanessa Oliveira Anjos.

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