segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Tinha paixão?

 [Herberto Helder faria hoje 93 anos. Poema da página O poema ensina a cair]


li algures que os gregos antigos não escreviam necrológios, 

quando alguém morria perguntavam apenas:

tinha paixão? 

quando alguém morre também eu quero saber da qualidade da sua 

paixão:

se tinha paixão pelas coisas gerais, 

água,

música, 

pelo talento de algumas palavras para se moverem no caos, 

pelo corpo salvo dos seus precipícios com destino à glória, 

paixão pela paixão,

tinha? 

e então indago de mim se eu próprio tenho paixão,

se posso morrer gregamente,

que paixão? 

os grandes animais selvagens extinguem-se na terra,

os grandes poemas desaparecem nas grandes línguas que desaparecem, 

homens e mulheres perdem a aura 

na usura, 

na política, 

no comércio, 

na indústria,

dedos conexos, há dedos que se inspiram nos objectos à espera, 

trémulos objectos entrando e saindo

dos dez tão poucos dedos para tantos 

objectos no mundo

e o que há assim no mundo que responda à pergunta grega,

pode manter-se a paixão com fruta comida ainda viva,

e fazer depois com sal grosso uma canção curtida pelas cicatrizes, 

palavra soprada a que forno com que fôlego,

que alguém perguntasse: tinha paixão? 

afastem de mim a pimenta-do-reino, o gengibre, o cravo-da-índia, 

ponham muito alto a música e que eu dance, 

fluido, infindável, 

apanhado por toda a luz antiga e moderna, 

os cegos, os temperados, ah não, que ao menos me encontrasse a 

paixão e eu me perdesse nela,

a paixão grega 


Herberto Helder, OFÍCIO CANTANTE, edição Assírio & Alvim

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