sábado, 30 de dezembro de 2023

O editor mostra ou conta?

Esta pergunta é desde já enganadora. Pressupõe numa resposta imediata e inequívoca que uma coisa (mostrar) anula necessariamente a existência da outra (contar). Ora, nada mais enganador. A resposta correcta é: depende. Depende do que o texto pede. Depende até do que o texto não está sequer a pedir pois aquilo que pedimos nem sempre é o melhor para nós e nem o que precisamos na verdade. O mesmo acontece com o manuscrito que será trabalhado pelo editor durante o processo de editing.

O editor para melhor conseguir ajudar o autor e o seu texto a sobreviver às duras provações de um público ora exigente ora desinteressado, que se distrai muito facilmente (a culpa é da eterna insatisfeita dopamina), pode propor alguns ajustes ao manuscrito original e adequá-lo às necessidades que a história "pede". Para o fazer tem de saber quando é preciso contar e quando é preciso mostrar.

Muitas vezes o trabalhodoeditorfunde-secomodoescritor, mas nessa relação entre dois é importante encontrar um balanço entre as técnicas literárias que favorecem mais o texto e aquilo que são as vontades do escritor para o seu livro mas que nem sempre são compatíveis com os planos do editor. Cabe a este último negociar e levar a bom porto esse plano traçado que traz ao texto o que ele precisa.

Falou-se já em aula que o editor pode propor alterações como: modificar o tempo verbal em que o texto está redigido ou até mudar a perspectiva do discurso narrativo, transitando-o da 3ª pessoa para a 1ª pessoa. Mais uma vez a adequação é muito importante. Se a história sugere uma atmosfera sombria de mistério então talvez a favoreça o uso da 1ª pessoa porque acrescenta ambiguidade à intriga. Entra aqui um conceito muito importante que é o do narrador não fiável (unrealiable narrator) que costuma andar de mão dada com a 1ª pessoa. Junta-se a fome com a vontade de comer porque é na 1ª pessoa que os unrealible narrators encontram um terreno fértil para germinarem e se desenvolverem.

Que seria do The Black Cat de Edgar Allan Poe se este contasse tudo, tudinho, retirando a imaginação e a participação do detective/leitor? Talvez já nem falássemos dele nos dias que correm. O conto The Fly de Katherine Mansfield também não seria tão enigmático e nem suscitaria tanto debate e interpretações (sobre o simbolismo da reacção do protagonista à mosca que se debate por sobreviver) que são feitas se contasse ao invés de mostrar. A beleza poética das descrições de Easter Eve de Tchekhov também não seria a mesma se ele contasse tudo como se o leitor fosse estúpido e sem raciocínio crítico. Nem a epifania final de Araby de James Joyce teria o efeito desejado sem o mostrar.

Ah! E para intensificar a atmosfera de incerteza de certos contos polvilha-se com uns pózinhos de pirlimpimpim de Anton Tchekhov com o seu característico mostrar e tcharam! Temos uma narrativa que não conta tudo e espera que o leitor preencha esses espaços por ocupar. Aqui entra o editor. Como este é companheiro do autor, com a sua sensibilidade e sagacidade procurará a técnica literária que melhor se adapta ao género de narrativa que o autor idealizou, para então depois a tornar mais apelativa e marcante para o leitor. Todas essas escolhas editoriais dependem das características de base do manuscrito que está a ser editado e da mensagem que se pretende transmitida para o destinatário.

A técnica literária mostrar é excelente porque permite ao autor não entregar logo o ouro (que é a revelação final) ao bandido (que somos nós leitores). São essas as histórias que não perecem no tempo.

(Artigo da revista Os Meus Livros, Número 96 Ano 8 Março 2011)

Vanessa Oliveira Anjos.

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