quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Remover repetições é extreme editing?

"Palavra dada é palavra honrada" e para mim a palavra dada tem muito valor. 

Como tal retomo assim o assunto da publicação anterior sobre a entrada repetições que deixei temporariamente suspenso mas não esquecido. No livro de Milan Kundera, A arte do romance (mais precisamente entre as páginas 165 e 166) está uma entrada que a meu ver está genial porque coloca a tradução e a edição num mesmo campo de preocupação. 

O autor mostra-se "levemente" incomodado com a obsessão dos tradutores pela utilização de sinónimos, e eu atrevo-me a dizer que essa obsessão será um mal que não morre solteiro e que será igualmente partilhado com alguns editores. É como se alguns deles tivessem uma certa aversão às repetições no discurso, ou seja, palavras que surgem literalmente repetidas várias vezes na narrativa.

A meu ver, se um tradutor (de inglês para português) remover determinadas palavras que considero determinantes para a mensagem, cabe depois ao editor regatear a situação e bater o pé se for um bom entendedor da língua de partida. Então e se a tradução for feita do russo para português? Se o editor não dominar o russo, como saberá identificar se essas repetições foram ou não desnecessariamente removidas? São dúvidas existenciais que continuam a pairar em mim, confesso.

Milan Kundera, de modo subtil, levanta essas problemáticas nessa entrada. Fez-me pensar o que seria do conto The lady with the dog (do autor russo Anton Tchekhov) se o tradutor decidisse abandonar os adjectivos que surgem intencionalmente repetidos ao longo da intriga, principalmente durante os passeios ao ar livre que Anna e Gurov fazem juntos. 

Esses adjectivos são marcas do impressionismo literário e enfatizam o efeito que o exterior tem no eu. Sem eles, a mensagem perde-se na comunicação autor-leitor que se torna assim surda ou com ruído em demasia (dependendo da perspectiva tomada pela tradução e pela edição).

Como se sentiria Claude Monet se alguém restaurasse os seus lírios com a estética do realismo do Gustave Courbet? Deixava de ser impressionismo, deixava de ser Monet com as suas pinceladas facilmente identificáveis que chegam até a reproduzir o vento numa imagem que é "supostamente" estática. Chamo a isso dom (uns gostam outros não e essa é a beleza da vida) e merece ser respeitado. 

E como se sentiria Herman Melville se o seu escrivão (do conto Bartleby - The Scrivener) deixasse de repetir vezes sem conta que não quer fazer o que lhe mandam fazer no escritório? Mais uma vez perder-se-ia a mensagem (Indivíduo Vs Colectivo) pelo caminho como se de um jogo de telefone estragado se tratasse. São tudo escolhas legítimas, mas que eu não as faria. E ainda bem que um editor tem grande poder de decisão no processo de produção do livro.

Vejo o extreme editing como uma espécie de restauro e de conservação (que não tem de ser necessariamente mal-intencionado) que correu mal. A intenção podia até ser a melhor na raiz, mas nem sempre se revela a melhor quando vemos o resultado e o trabalho do autor se torna descaracterizado. Percebe-se a indignação do Kundera com o abuso dos sinónimos porque as repetições na narrativa são dons e que merecem ser respeitados, tal como uma pintura restaurada deve respeitar a sua génese...


P.S. Para quem é amante de artes plásticas (e a pintura é uma boa contadora de histórias), deixo este canal de YouTube que é incrível:


Vanessa Oliveira Anjos.

Sem comentários:

Enviar um comentário

Até sempre

 Terminado este ano, muito obrigada pelas partilhas, Rui Zink. Muita sorte a todos os que ainda vão entrar no mercado de trabalho.  Façam mu...